As diversas decisões políticas do atual governo não se cansam de disputar atenção com o devastador cenário da pandemia, e já não bastava os destroços que estamos colhendo a cada dia pelo ineficiente investimento em ciência, o ministro da Educação Abraham Weintraub vem a público declarar a manutenção do ENEM 2020 e agregar a isto, a monstruosa fala que o “Enem não é feito para atender injustiças sociais”.
O contexto das desigualdades sociais do Brasil sempre foi notório, e mesmo assim não há sequer um fio de luz e aprendizado com a história do nosso próprio povo. Não venho aqui me delongar a narrar todo o sucateamento e a enviesada oferta de educação desde o ensino básico, que por si só é excludente a maioria da população desde que o Brasil é Brasil. Quero recortar para o cenário atual, que em meio a uma pandemia, onde muitos estão tentando apenas terem o básico para se manterem vivos, o Governo em um ímpeto cruel diz que “busca selecionar os melhores”.
E quais são esses melhores? De fato, não devem ser a grande parte dos estudantes oriundos de instituições públicas, que durante o período letivo pouco tem acesso a uma infraestrutura de qualidade, a material didático atualizado e que entre a precariedade e a luta pela sobrevivência, persistem na tentativa de estudar, como uma possível saída para as suas mazelas. Estima-se que cerca de 25% dos estudantes brasileiros não tem acesso à internet (IBGE, 2018) – vale-se ressaltar que isto já dificulta a própria inscrição ao processo seletivo como também agrava o acesso a informação igualitária. As universidades públicas estão paradas, pois nunca houve um plano de contingência que visasse um cenário caótico como o atual, onde fosse possível prever ferramentas de ensino à distância. – Ah! Mas o ENEM tem que continuar, o contrário disto são falácias levantadas por componentes de esquerda que tem objetivos políticos e econômicos para fragilizar o governo, comentou o ministro.
Durante a gripe espanhola, em 1918, o deputado Sólon de Lucena disse “Todas as classes, desde os humildes trabalhadores até aqueles que gozam do maior conforto na vida, foram alcançados pelo flagelo terrível”. Nesta mesma ocasião, como remediação a devastadora crise que tomava de arroubo todos os setores da sociedade brasileira do início do século XX, houve a suspensão das aulas e aprovação de todos os estudantes naquele ano letivo. Pelo visto, a história não serviu de muito aprendizado, tal como o contexto recente, já que devido a pandemia do COVID-19, a França e os EUA cancelaram os vestibulares.
Outrossim, talvez algo mais podre possa estar em coesão com estes fatos. A quem interessa a manutenção do ingresso do estudante ao ensino superior, principalmente em um cenário onde as universidades públicas estão fechadas e haverá adiamento de todas as atividades previstas para o ano de 2020? Em paralelo, as instituições de ensino superior privadas seguem funcionando com adoção da educação à distância, sendo alimentadas financeiramente, em grande parte, pelo dinheiro público. Então, para estas empresas a não realização do ENEM seria desastroso. Fica evidente assim que os líderes do governo não aprenderam nada com as lições do professor Anísio Teixeira, e que os “melhores” representam a mesma porção da sociedade que está reclamando do ócio em casa, em contraponto a outra que vive com medo de morrer, seja de fome ou pelo COVID-19.
Pensar que é precoce falar de um evento que está programado para novembro, é não ser empático com o estudante que está pressionado para “ser o melhor” e não tem nenhuma ferramenta para isto. A preparação para o vestibular é processual e depende, acima de tudo, de um contexto social e mental saudável. Como um leve suspiro, alguns grupos sociais, parlamentares e membros das universidades públicas tem discursado a favor do adiamento do ENEM, além da repercussão em mídias sociais com a #adiaenem. Porém, até a finalização deste texto, a fala do ministro se mantém inflexível e porque não dizer, antidemocrática. Em meio a treva que cerca este momento, que a educação seja luz, e que haja “paz no futuro e glória no passado” para todos “filhos deste solo”, não só para os “melhores”.