Em 1888, a Princesa Isabel assinava a Lei Áurea, pondo fim, em termos legais, ao processo de escravidão, reconhecendo assim, em definitivo, o direito de liberdade ao povo preto no Brasil. Entretanto, essa medida, somadas as anteriores, não visaram empreender ideias que pudessem proporcionar ao recem-liberto equidade e equiparação de direitos. Muitos deles, como retratado pelo professor Walter Fraga em seu livro “Encruzilhadas da Liberdade“, continuaram trabalhando para seus senhores como agregados,nas lavouras,outros se arriscaram e tentaram a sorte nos grandes centros, engrossando as aglomerações urbanas criadas como as favelas e cortiços, se aventurando no subemprego as vezes.

Por não haver, aliadas as políticas de reconhecimento cidadão, medidas de equiparação para os libertos, muitos passaram a viver a margem da lei e o resultado estamos sentindo hoje. O Brasil, juntamente com outros países, lidera, de forma negativa, as estatísticas de desigualdade racial em diversos pontos. Da educação ao mercado de trabalho, o negro ainda está aquém do branco e este é um grande retrato do processo histórico e estrutural da formação de nossa sociedade. Para além disso, o recorte racial no país se dá, de forma marcante, nas relações sociais, na capacidade de ascensão e destaque, na manutenção das barreiras atitudinais, na linha divisória ( visível ou invisível) que separam brancos de pretos.

Salvador é o maior exemplo deste grande retrato. Cidade com maior contingente de pretos fora da África, a capital baiana possui os maiores índices de desemprego no país, muitos que estão fora do mercado de trabalho são pessoas pretas. Isto é sentido e visto nas ruas, no mercado informal, nos subempregos e,infelizmente, na prostituição e marginalidade. A estrutura de nossa sociedade é muito desigual e empurra os nossos semelhantes para um fosso desumano, quando objetificamos os corpos pretos dentro da perspectiva criada pela sociedade escravocrata de que o preto deve ser tratado como coisa, objeto da satisfação de um prazer branco em todos os sentidos.

Desta forma, para falar da trajetória de Davi, um jovem preto que veio da periferia de Salvador, precisamos refletir em todo o processo estrutural que ainda sustenta o racismo em nosso país. Quem acompanha o BBB pelo menos já apontou diversos momentos em que o menino, nascido e criado no bairro de Cajazeiras, já passou. Diversas “CPIs” para apurar as suas atitudes e intenções, desde as obrigações com a higiene da casa ao uso de termos que qualificam as ações de outros confinados. Dentro da casa mais vigiada do Brasil, Davi tem enfrentado diversos julgamentos, por ser sincero, por ser curto e direto, pela sua baianidade, por trazer o muito do jeito soteropolitano de ser, cultivado e cultuado nas ruas de nossa capital enquanto estratégia de alegria e sobrevivência. Traz consigo a sua história de vida, comum a de muitos meninos pretos que enfrentam as dificuldades impostas pelo racismo estrutural ao longo do tempo.

Por isso e por tudo, ele é visto a margem,posto em dúvida e em evidência pelas lentes de um Brasil que, a duras penas, está fazendo a sua reparação histórica. Por isso e por muito, o país o abraçou, por se vê na tela da tevê representado por um rapaz preto que já vendeu garrafa de água “no balde, na Lapa” e hoje leva a vida como motorista de aplicativo, profissão que teve o seu reconhecimento,nos últimos dias, pelo atual governo . Davi representa, sim, o sonho dos meninos e meninas de sua raça que querem realizar, se tornar médicos,doutores,engenheiros e contribuir para a melhoria de um povo, de um país.

Levando em conta estes motivos, Davi foi abraçado por um país ávido por políticas de reparação, uma vez que o racismo persiste nas relações sociais. Ele é o desejo de um país, que precisa se rever nas vísceras de sua estrutura social. Aos poucos, com Davi e outros tantos que passaram pelo reality, aprendemos em rede nacional sobre como ser sincero, real em um mundo onde vale tudo para se dar bem na vida. Como Babu Santana, Telma Assis, Fred Nicacio e Lucas Penteado, só para citar, o brother pauta e se pauta nas telas planas de tevê, nos telões armados nas ruas. Por ser quem é e pela luta por sua existência, o Brasil abraçou Davi, por se vê nele, na sua essência de homem preto “correria”.

Para finalizar e sem tanto proselitismo, Davi é a síntese da história de seu povo, da luta para existir, enfrentando um sistema que lhe desfavorece enquanto cidadão. É por essas e outras que ele é um fenômeno, talvez um cometa dentro de um programa que, parece bobo, mas pauta o Brasil em suas estruturas sociais.

Com Davi, aos poucos, a gente vai “desbotando a cor do preconceito“.

 

 

 

 

 

 

Comentários no facebook