Nas últimas décadas, as redes sociais revolucionaram a nossa forma de se relacionar com a tecnologia e com o mundo. Com a ascensão de vários sites de relacionamento e outros aplicativos, as distâncias foram encurtadas cada vez mais e isso se aplica às nossas questões individuais e emocionais. Sentimos o mundo com mais intensidade e nos tornamos criadores dos nossos próprios conteúdos,pautando a sociedade nos costumes e no comportamento.

Até certo ponto, sentimos essa tal liberdade de pautar assuntos que, até então, eram tabus a serem enfrentados por todos nós e, a partir daí, nos mostramos desnudados em nossas individualidades.Por sua vez, ao olhar, de forma detalhada e analitica, percebe-se que a sensação de ser livre nas expressões é sutilmente vigiada e as redes sociais se tornam um sistema paralelo que determina, de acordo com as nossas preferências, o que iremos ver ou compartilhar, tornando-se um formador de bolhas segregadoras.

Pois bem, ao ver o documentário “ O Dilema das Redes”, lançado recentemente pela Netflix a sensação que se tem é de vigilância constante. De acordo com a produção,nos tornamos os produtos deste novo sistema elaborado pelos sites de relacionamento, manejado pelas mentes interesseiras dos donos e desenvolvedores. E nesse mundo cheio de bits e bytes nos tornamos presas fáceis daqueles que manejam e estruturam os algoritmos para moldar as nossas consciências, gostos e escolhas.

Desta forma, ver o que está acontecendo, a primeira vista, nos faz querer deletar as nossas contas de e-mail ou então os nossos perfis/usuários das redes de relacionamentos. E se fazemos isso, a probabilidade é de ficar fora do sistema, de tudo aquilo que vimos, das relações que temos, pois, nestes locais, não estamos mais no anonimato. De qualquer forma, perdemos,ora estando dentro ou ficando de fora.

Será que a filosofia explica?

Muitos dos filósofos que vivem ou respiram a contemporaneidade estudam os dilemas humanos no mundo de hoje. De Agamben a Baumam,passando por Levy, nunca o sistema e a relação do homem nesse contexto foi tão analisado. Ao assistir os lances do documentário, lembrava de que o modelo de relacionamentos líquidos explicados por Bauman mostram que a afetividade foi, infelizmente, ressignificada pelo status no Facebook. Já Agamben nos faz lembrar do controle dos corpos onde fala sobre biopolítica, ou seja, quando os algoritmos pautam o que deveríamos fazer de acordo com o que pesquisamos recentemente.

Dessa forma, estes autores questionam as relações na pós modernidade com a diluição dos laços de convivência e do controle sobre os corpos.Percebendo o caminho sombrio que foi tomado por aqueles que adicionaram as ferramentas de persuasão, com a finalidade de prender a atenção do usuário.

O lado sombrio das redes

Mais do que mostrar esse lado negativo das redes sociais, o documentário faz diversos questionamentos a respeito dos caminhos que foram tomados. Além de serem instrumentos de interação entre pessoas, esses aplicativos de interação se tornaram nocivas ao longo dos últimos anos e essa fala vem das entranhas destes dispositivos, daqueles que colaboraram para a manutenção desta engrenagem.

Para ter a noção exata do que está acontecendo, o ex-funcionário do Google, Tristan Harris, afirma, em uma entrevista para a revista Veja, que “Nós valemos mais para o Facebook se formos viciados, distraídos, indignados, polarizados, narcisistas e desinformados do que se vivermos livremente de maneira rica, e não grudados nas telas.”.

Ainda de acordo com o conteúdo do documentário, muitas destas redes podem estar, em demasia, ligadas a problemas psíquicos como os transtornos de ansiedade, ou, em uma outra mão, voltadas a determinação de uma desordem política e social que facilita a ascensão de políticos extremistas e excêntricos na forma de se dirigir ou comunicar, dando tons reais aos pensamentos e desejos de seus usuários (ou boa parte deles).

E neste processo, estamos perdendo a nossa identidade, perdendo o controle do próprio destino, como afirma Tristan Harris.

Chuva de Fake News

Ainda na entrevista concedida para a Veja, Harris salientou que as fake news, dentro deste clima de contemporaneidade, se tornou um problema grave. Neste sentido, podemos inferir que isso foi decisivo para ferir de morte as democracias, assim como conhecemos, ao consagrar, nas urnas, uma leva de políticos populistas e autoritários, verdadeiros protótipos montados por quem detém o poder biopolítico de mexer nos algoritmos que compõem o grosso das redes sociais, com a finalidade de atender desejos e necessidades do inconsciente oculto e cada usuário.

Dentro do documentário, o ex-Google comenta sobre um estudo que faz uma análise sobre o consumo de notícias falsas nas eleições de 2018, onde cerca de 80% das pessoas tiveram acesso a ,pelo menos, uma fake new. E dentro do que a nossa percepção imagética nos leva, é visto que, automaticamente, replicamos para os devidos canais sem checar os fatos.

Em um universo onde somos produtos e temos a falsa sensação de liberdade e normalidade democrática, quem domina este sistema e detém a capacidade de manejar os bits e bytes, pode, tranquilamente, fazer a nossa agenda e pautar, por nós mesmos, aquilo que queremos ver, sanando assim os nossos anseios e necessidades. E esse trabalho de ler as consciência por aquilo que postamos, do textão ao meme, tem colocado em evidência o futuro das redes sociais e o nosso futuro por conta das fake news.

Os dilemas da humanidade e a humanização das redes

Não há como negar que a produção “O Dilema das Redes” teve a coragem de expor, as claras, as vísceras das redes sociais, pegando depoimentos de quem esteve nas engrenagens dos mecanismos de relacionamento. De Mark Zuckerberg aos inventores do Tik Tok, a mais nova febre do momento, podemos dizer que as redes de interação moldaram e se moldaram para a sociedade atual. São vitrines de ideias e modos de vida. Entretanto, ao passo que ela encurtou as distâncias também nos aproximou dos nossos conflitos e problemas, assim como tornou aguda as diferenças e rivalidades entre os seus usuários.

Destes problemas e de tudo aquilo que as redes se tornaram, no intuito de prender a atenção do usuário, vem a necessidade de reencontrar com a proposta inicial destes sites de relacionamento e ressignificar a finalidade de juntar pessoas e proporcionar um laboratório de vivências e valores colaborativos. São princípios e pautas que vão na linha de uma perspectiva humanista de preservação da individualidade e fomento da solidariedade.

É esse o discurso defendido por aqueles que estiveram nos bastidores e expuseram as pretensões de um sistema que controla corpos e mentes utilizando mecanismos eficazes, por meio da imersão dos desejos e necessidades expostos em postagens que verbalizam o mundo interior de cada um. Nenhuma mente, por trás dos algoritmos, pode pautar ou oferecer sugestões e nos dividir em bolhas, dominando nossos gostos, escolhas e vontades. A liberdade tem que ser vivida na máxima do respeito aos valores e não na falsa impressão de escrever o que quer para quem puder ler.

A internet é apenas um simulacro do nosso mundo e as redes sociais são apenas vilas de um mundo maior, onde as nossas casinhas são as “parede e meia” deste espaço reprodutor de realidades. Nesta realidade criada a partir de uma já existente, tornar as redes  um espaço agradável e vetor de uma sociabilidade anti tóxica é um novo desafio para manter a humanidade. Não somos usuários, muito menos produtos que consomem outros produtos, mas sim seres individuais dentro de uma coletividade.

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