LEI 11.340/2006 é uma lei que visa amparar as mulheres ( cisgeneras e transgeneras) de violência doméstica familiar. O objetivo foi combater o preconceito , a discriminação e as formas de violência que as mulheres sofrem na sociedade, principalmente no campo doméstico, onde muitas vezes a violência reiterada fazia com que a mulher sofressem as maiores violações sem ter coragem de expor para terceiros ou até mesmo de denunciar seus agressores.

Portanto, a lei tem um efeito social fantástico porque além de ter dado ensejo a criação das Delegacias de Mulher – DEAM também encorajou que muitas mulheres não ficassem mais caladas frente a violência.

Em relação as mulheres transexuais é preciso compreender que a lei não aplicou o critério biológico para definição do sujeito passivo do crime. Assim é necessário inicialmente compreendermos as definições de sexo, gênero e identidade de gênero e o que realmente pretendeu o legislador quando deixou claro na letra da lei que visava proteger violência de gênero no art. 5º:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015)

O gênero vai muito alem da definição trazida pela biologia, pois temos que levar em conta a auto percepção do individuo de como se entende e se expressa na sociedade. É inegável que uma mulher transexual, apesar de não ter o corpo biológico feminino, é uma mulher de fato, pois vivencia na sociedade situações e expressa o gênero feminino no seu dia a dia. Negar a mulheres transexuais o direito a proteção da L.M.P é uma violação de direitos humanos e um retrocesso jurídico.

O sexo é determinado antes do nascimento, no entanto, a identificação de gênero pode sofrer modificações ao longo da vida podendo a pessoa se identificar de modo diverso com o seu sexo biológico, não quis a LMP atribuir como elemento do crime o sexo senão o legislador teria declarado isso expressamente, ao contrário o legislador determinou que o critério seria o gênero feminino, portanto não há espaço para interpretações contrárias ao que pretendeu o legislador e ao que determina a constituição da república federativa do Brasil em que preconiza no seu art. 3, IV – ” Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Negar medida protetiva a mulheres transexuais quando a lei ordinária expressamente assim não o fez é uma medida discriminatória e transfóbica.

O art 2º da LMP é cristalino ao assinalar a inclusão das mulheres transexuais :

Toda mulher, independente de classe, raça, etnia, orientação sexual , renda, cultura, nível educacional, idade ou religião , goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo lhe assegurada as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental  e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

É evidente que a lei foi destinada a violência contra mulher e não faz menção a mulher biológica, uma vez que utilizou os termos  classe, raça, etnia, orientação sexual , renda, cultura, nível educacional.

É preciso mencionar que as mulheres transexuais / travestis atualmente contam com direito da retificação civil pelo provimento 73/2018 do CNJ onde foi reconhecido a elas o direito a retificação de documentos para o gênero feminino, sendo teratológico pensar que elas tem direito a gênero feminino nos documentos mas serão tratados como do gênero masculino na aplicação da lei Maria da Penha.

Ademais, fere o principio da isonomia reconhecer as diversas formas de ser mulher inclusive com respeito a orientação sexual e excluir a identidade de gênero, uma vez que sendo é a real manifestação de ser mulher na sociedade. O que a lei portanto visa amparar é a opressão que a mulher ( cis, trans, lesbica, hetera, bissexual) sofre dentro da sociedade e não sua condição biológica, até porque a biologia não interfere em nada porque o nem jurídico tutelado é que essa mulher seja protegida da violência cissexista provocada por terceiros.

Vale mencionar que já há entendimento doutrinário no sentido da aplicação de lei mais gravosa, qual seja, lei do feminicidio e sua aplicabilidade a mulheres trans sendo certo que segundo Adriana Ramos Melo em seu artigo: “Feminicídio: breves comentários a Lei 13.104/2015” aponta que como o sujeito passivo do crime é mulher e que existem 03 (três) posicionamentos doutrinários para identificar mulher para aplicação da qualificadora do crime de feminicídio: 1) Critério psicológico; 2) Critério Jurídico Cível e 3 ) Critério biológico.

O Critério Psicológico entende que deve ser considerada  forma como a pessoa se entende, logo, se ela se reconhece e vive de acordo com uma mulher, ela deve ser reconhecida como mulher, independente de sexo biológico de origem, cirurgia de transgenitalização ou retificação de documentos civis.

O Critério Jurídico Cível entende que só deva ser reconhecido como mulher quem tem nos documentos civis nome e sexo femininos. Novamente só seria possível aplicação a mulheres transexuais que tivessem conseguido retificação de nome e sexo em sua certidão de nascimento.

E por fim o Critério biológico que entende que deva ser considerada a condição genética ou cromossômica, negando totalmente a socialização das mulheres transexuais, o direito a identidade e a proteção do Estado com base em um critério essencialista. O entendimento de Francisco Dirceu Barros a afirmar que a subjetividade do critério psicológico e que em relação ao critério jurídico cível o mesmo não poderia ser aplicado tendo em vista separação do sistema civil e penal, alegando ainda que a mudança jurídico cível representaria algo que seria usado em prejuízo do réu, afrontando a proibição de analogia in malam partem

A tentativa do tribunal de justiça de São Paulo de aplicação do critério biológico nada mais é do que uma odiosa tentativa de deturpação da LMP, uma vez que na minha opinião é má fé dizer que segundo os critérios de um homem médio do direito penal o individuo não perceba que se trata de uma mulher transexual e que esta mereça tanto respeito como qualquer mulher, esse entendimento esposado no r. acórdão nada mais é do que uma deslegitimação das identidades transexuais e uma afronta ao principio da dignidade da pessoa humana, alem de contribuir para o processo desumanização das identidades trans, relegando mulheres trans como pessoas de inferior valor quando comparada com outras mulheres.

Os crimes de ódio praticado contra Mulheres Transexuais e Travestis vem crescendo ano a ano no Brasil e em muitos casos a violência doméstica e muito presente na vida das mulheres transexuais / travestis, é preciso dizer que elas sofrem violência em primeiro lugar por expressarem sua feminilidade, por serem mulheres sendo a transfobia a manifestação o ódio ao gênero feminino, que faz com que a sociedade puna aquela pessoa por expressar uma identidade que é colocada em segundo plano por um sistema machista e sextista que oprime, machuca e mata mulheres.

por MARIA EDUARDA – ADVOGADA 
Presidenta do Grupo pela Vidda Rj
2017 – 2019 e 2020 – 2022
PREVIDENCIARIO – RESPONSABILIDADE CIVIL  – DIREITOS LGBT E PVHA – DIR CRIMINAL –  DEFESA EM PROCESSO EM DEFESA DA MULHER VITIMA DE VIOLÊNCIA – ESPECIALISTA EM CASOS DE LGBTFOBIA.
ADVOCACY JUDICIAL E LEGISLATIVO – ATIVISTA EM DIREITOS HUMANOS –
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