Todos nós abrimos a guarda de um cenário instituído e fomentado nas redes sociais
Uma nuvem tóxica e densa parece tomar conta dos céus do Brasil. Em pleno ano de 2020, o país parece envolto em uma cortina de sentimentos nocivos, engatilhado por um cidadão, que se tornou presidente da república e assimilou bem todo o repertório de um país em convulsão política, requentado por manifestos sem líderes, fake news, processos eleitorais agressivos e um golpe travestido de impeachment, orquestrado por um sistema organizado que envolvia conglomerados de comunicação, uma elite empresarial ávida por não perder privilégios, pseudo líderes religiosos e organizações políticas que tomaram conta do debate no espaço público.
Toda essa mistura bombástica nos fez reféns de um discurso de ódio que saiu das redes sociais e ganhou as ruas de um país já convulsionado por Black Blocks, MBL e outros grupelhos,além de outros fatores que escancararam as fragilidades de um sistema de participação que redemocratizou o país após o fim da Ditadura Militar.
O resultado dessa loucura que estamos vivendo está nas agressões sofridas por jornalistas (mais precisamente da Rede Globo) e por uma ameaça de ruptura de poderes. Em meio a uma pandemia, que nos colocou sob os holofotes do mundo inteiro nos últimos meses, o presidente se tornou o fator potencializador desta desarmonia, agindo de forma despótica e autoritária, usando disso como escudo para disfarçar seus trambiques investigados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Com os indícios de impedimento batendo a porta do Palácio da Alvorada, a tendência é que a temperatura do autoritarismo aumente, chegando a inflamar cada vez mais uma pequena turba de fanáticos movidos ao ódio destilado por negacionismo a uma realidade imposta pelo caos. Enquanto o país chora as mais de 40.000 vidas perdidas em meio a este fogo cruzado que divide cada vez mais um país. Dia após dia, essa nação sangra nas favelas e comunidades mais afastadas dos grandes centros urbanos.
Radiografia do Ódio
Os últimos acontecimentos que ocorreram na última semana, no Rio de Janeiro, são uma radiografia de uma sociedade tomada por um sentimento de ódio. Um apoiador bolsonarista avançou sobre o monumento de cruzes fincadas na areia da Praia de Copacabana, que simbolizavam as vítimas da COVID 19. A ação de desrespeito foi barrada por um taxista, que perdeu seu filho para o vírus.
Como se não bastasse isso, o atual presidente, durante a sua costumeira live, incitou apoiadores a invadirem hospitais na busca de leitos disponíveis no tratamento do Novo Coronavírus. E foi o que aconteceu na última sexta-feira (12), quando populares invadiram o Hospital Ronaldo Gazolla, depredando os espaços da instituição hospitalar a procura de um paciente que faleceu.
E a cereja do bolo da intolerância está na invasão a Rede Globo.Um homem fez a repórter Marina Araújo refém na última quarta (10). Em posse de uma faca, ele exigia a presença da âncora do Jornal Nacional , Renata Vasconcelos, a aniversariante daquele dia. Mesmo sendo um fato isolado,pois o rapaz porta problemas neurológicos, é impossível não incluir isso no termômetro que mede o clima quente de um país adoentado por um sentimento nocivo que desuniu famílias e expôs as vísceras de uma sociedade alimentada pela violência em suas estruturas conservadoras e carcomidas.
O ódio que nos levou até 2020, legou a herança cruel de uma sociedade estritamente desigual , haja vista a morte de dois jovens pretos nos últimos dias, que nos mostrou reminiscências do período em que o país foi forjado por bases escravocratas.
Fala Karnal
Em seu livro “Todos Contra Todos”, o historiador e filósofo Leandro Karnal analisa as bases que se sustentaram e são nutridas pelo ódio na formação do país.Durante o processo,este sentimento defenestrou os pretos oriundos da África,tirando a dignidade que ora tinham. De nobres e príncipes, os “então imigrantes” se tornaram escravos, violentados pelos colonizadores portugueses em todas as formas de existir.
Nesse sentido, o ódio era a base de um hegemônico sistema social ambientado na restrita mobilidade de classe. A violência,por si só, nada mais é do que o mecanismo de segregação e manutenção da ordem. Segundo Karnal, o ato de odiar alguém, levou o país a várias guerras civis que foram pormenorizadas pela historiografia oficial, isso sem falar que a disseminação reforçou padrões e preconceitos, algo que reconhecemos em atitudes recentes.
O odio, juntamente com a violencia, se institucionalizou e virou a ferramenta de manutenção do status quo de uma elite forjada neste processo por bases violentas, ora por medo, ora pela manutenção de uma Zona de Conforto.
O que nos levou até aqui
O ódio se tornou potência , de certa forma, destruidora, que arrasa reputações ou então é capaz de arrasar sistemas democráticos e conquistas sociais.Nesse “quentinho” denominado por Leonardo Sakamoto, chegamos até 2020 com arranhões institucionais,troca de farpas, formações de bolhas,dissensão familiar, tudo isso devido ao ato de fazer política odiando. Todos nós “abrimos a cancela” e retroalimentamos esse monstro que, dia após dia, se torna imparável,desde as falas do presidente até as atitudes inflamadas de um “BAVI” político interminável.
O brasileiro que tenta se manter no limiar da lucidez já está farto da carga tóxica, que toma conta dos noticiários diariamente. Todos nós viramos reféns do cenário que criamos nas redes sociais e tomou forma nas ruas, seja nas agressões constantes a veículos de imprensa ou àquele cidadão que perdeu um filho para uma pandemia politizada por quem deveria cuidar de ações para o combate.
No Brasil de hoje, o vírus que tirou mais de 40 000 vidas se alimenta de um outro, o do ódio. Chegamos neste ponto,infelizmente.