Em maio de 1976, a Rede Globo lançava, no horário das 22h, a novela Saramandaia. Escrita por Dias Gomes, a trama se passava em uma cidade localizada na zona canavieira de Pernambuco, mais precisamente no município fictício de Bole Bole, que protagonizou um plebiscito, dividindo a cidade ao meio entre tradicionalistas ( que defendiam o nome atual) e os mudancistas ( que alegavam vergonha do nome, defendendo a mudança para Saramandaia).Coincidência, ou não, em 2013, a emissora exibiu o remake reduzido da produção, bem no auge dos primeiros movimentos que culminaram na crise democrática que estamos passando.

Durante o desenrolar da história, escrita por Dias Gomes, um professor se transformava em lobisomem, um prefeito vertia formigas do seu nariz, um farmacêutico colocava o coração pela boca ao se inflamar. Os telespectadores viram também a explosão de uma personagem em meio ao seu peso e o apetite ilimitado, creditado pela alcunha de Redonda, entre outros que pairavam o imaginário popular que sequer imaginava a linguagem utilizada pelo realismo fantástico, na época, como recurso necessário para bater de frente com uma ditadura em seus quase estertores, pois foi nas asas de João Gibão que a esperança da liberdade pôde ser alimentada em tempos tão duros.

Pois bem, o Brasil de 2020, tem na vida política uma Saramandaia ampliada, protagonizada pelo tripé conservador (milicianos-militares/neopentecostais/ideólogos) e por uma oposição sem rumo e sem uma liderança capaz de “mudar a chave” dos rumos que a coisa pública tomou em um país altamente polarizado pela intolerância nos extremos da insanidade. De Damares em sua goiabeira ao senador que foi pego com um maço de dinheiro entre as nadegas, a cada dia vemos laranjas e açaís na fantástica fábrica de chocolate, usada para lavar a “bufunfa”. Não é preciso delirar, usar um entorpecente para chegar no mundo de Alice filosofando como Poliana, pois a realidade construída pelas redes sociais, nas lives do atual presidente, nos diz muito sobre o que é concreto, saído da consciência de cada brasileiro em outubro de 2018. Faz dois anos não é mesmo? Mas parece que foi ontem.

O atual governo, e seus apoiadores, incorporou para si a realidade fictícia de Saramandaia se apegando na tábua de salvação do conservadorismo idealizado em um passado vicioso, patrocinado pela atual classe média delirante, que se imagina rica. Coisas de um país que, em 2020, se vê no ápice deste movimento surreal.

O Brasil real

Desde que Bolsonaro foi eleito, o noticiário brasileiro foi tomado por notícias que causam espanto dada a origem. A corrupção, que já era algo considerado um pecado, neste governo ultrapassou os limites do real. Impossível imaginar que, dentro do poder, alguém prefere, de forma “inocente”, fazer diversos depósitos em cheques e, por meio das rachadinhas, conseguiu adquirir patrimônio e renda. Com dinheiro vivo e depósitos realizados pelo braço direito, Fabricio Queiroz, o atual presidente conseguiu “fazer política”, mantendo uma estrutura do seu apartamento funcional em Brasília durante 28 anos, algo anticonvencional para os padrões mantidos pelos corruptos sistêmicos e muito próximo do imaginário mediano.

Para aqueles que guardam dinheiro sujo, fruto de várias negociatas, em paraísos fiscais, o tipo de corrupção adotado pela Família Bolsonaro é algo pequeno, mínimo, dentro do que é imaginado. O modus operandi, adotado pelo clã, está dentro da Saramandaia escrita por Dias Gomes, elencado no hall dos absurdos risíveis por grande parte da classe política e ridicularizada nos corredores dos centros de poder.

E esta realidade, acompanhada pelo negacionismo e autoritarismo, se vê contida no Brasil de hoje, germinada feito semente em solo fértil nos sonhos e delírios dos conservadores, dilemas de um país que deve enfrentar o seu passado para entrar de vez no futuro.

Qual tipo de corrupção?

E nesta Saramandaia real que se tornou o Brasil da Era Bolsonaro, o absurdo não está em atacar a corrupção, mas sim em defender a forma como se desenvolve os vícios de poder. É surreal sustentar que o atual presidente difere dos corruptos pela sua clareza em assumir “ser corrupto”. E o que é a corrupção em um país imerso no caos, onde o governante, junto com seu ministério, assume e personifica as metáforas, jogando no imaginário de seus apoiadores como seu aliado de sustentação?

Meus caros, em meio a uma pandemia que tirou mais de 155 mil vidas e afetou mais de 5 milhões de pessoas, o normal é manter a sanidade e ficar “blasê” diante da Saramandaia que se personificou o Brasil pensado, sustentado e imaginado por Jair Bolsonaro, para além da poltrona fofa e brega dos programas classe B.

Em pensar que o brasileiro já viu de tudo, vem um senador e aumenta o repertório da corrupção normalizada neste paraíso fictício/real que se tornou o país em 2020. Aliás, é por este caminho, tornando o “normal” anormal, que o país avança e assim ficamos abaixo da risca do que somos para o mundo, uma “republiqueta”.

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