“O que aconteceu no Rio entre o carnaval de 1919 e a Revolução de 1930? Tudo.”

Essa pergunta, seguida da resposta peremptória, nos dá o tom daquilo que a historiografia dos costumes habituou-se a classificar como o progresso pós-crise.  Em seu livro “A Metrópole à Beira-mar”, lançado em 2019 pela Companhia das Letras, o escritor e biógrafo Ruy Castro traz uma narração sobre a sociedade carioca a partir do exato pós-Primeira Guerra, contando-nos como foram vividos aqueles anos na então capital federal.

Os relatos a respeito do carnaval de 1919 são especialmente saborosos. Se o Brasil ainda engatinhava rumo ao novo século, a sua capital já respirava ares bastante libertadores. Era o fim de anos difíceis. A Primeira Guerra Mundial, então chamada, óbvia e ingenuamente, apenas de A Grande Guerra, acompanhada da maior crise epidemiológica da história da humanidade, deixara marcas profundas. A guerra havia mostrado ao mundo que os avanços alcançados na belle époque podiam também ser bastante destrutivos. A energia elétrica, a maior velocidade de comunicação à distância e os automóveis vieram acompanhados de tanques, bombas e outras armas capazes de causar danos muito maiores do que havíamos visto até então.

A gripe, ironicamente batizada de espanhola, visto ser a Espanha o único país europeu que, afastado da Grande Guerra, noticiava a evolução da pandemia, alcançou níveis apocalípticos. Estima-se que 500 milhões de pessoas tenham sido infectadas. Um quarto da população mundial. Relatos de corpos empilhados pelas ruas, famílias que se despediam a cada vez que se viam como se fosse a última vez. Autores alemães, fatalistas ou inconformados, chegam a conferir à gripe papel fundamental em sua derrota na guerra: 500 mil soldados alemães teriam morrido por conta do vírus às portas de Paris. Fato é que esses dois eventos combinados, a guerra e o vírus, mudaram o modo de vida em nosso planeta.

No Rio de Janeiro, vitrine de um Brasil ainda rural e pouco integrado ao que hoje chamamos de escala de influência global, a vida fervia. Nomes como Carmen Miranda, Lima Barreto e Bertha Lutz, umas das únicas 5 diplomatas mulheres a assinarem a Carta das Nações Unidas, na Conferência de São Francisco, 25 anos mais tarde, faziam da então capital federal um espetáculo à beira mar. Saraus, poetas, cinemas. Uma atmosfera de liberdade e progresso. Havíamos vencido o momento difícil e agora era hora de celebrar.

Clérigos e historiadores

Em minha experiência, aprendi que historiadores e religiosos dificilmente partilham convicções. São Tomás de Aquino e Eric Hobsbawn, no entanto, estão de acordo quanto ao fato de a vida é feita de ciclos. Tome qualquer desses dois prismas e verá que há toda lógica no que vivemos hoje, em 2020.

A globalização, a interação sem precedentes entre populações, os conflitos ao redor do mundo causando uma massa de pessoas deslocadas de seus lugares. Cadeias de consumo totalmente interligadas. Basta um morcego mal fervido na China, como um sarapatel preparado por um paulista, e pronto, estamos todos, indistintamente, afetados pela maior pandemia da história.

Mudanças de hábitos, de humor, de profissão. A vida no mundo inteiro tendo que se adaptar ao famigerado “novo normal”. Bem, se clérigos e historiadores tiverem mesmo razão, ao menos tudo isso será sucedido por um momento de grande bonança. Evoluiremos enquanto sociedade, respiraremos ares de progresso e a vida será melhor, até voltar a ser pior de novo.

Mas, e o Brasil nisso tudo? Como fica o nosso país em meio a toda essa cena?

Já somos um país urbano, integrado, uma das 10 maiores potências econômicas do globo (a opinião deste autor de que a Terra é um globo não reflete necessariamente a opinião do grupo). Certamente desfrutaremos de um momento de esplendor pós-Covid-19, certo? É… mais ou menos!

O Brasil tem sido um exemplo de como não se comportar perante a pandemia. Ao lado dos Estados Unidos, o país lidera a lista dos países mais afetados, e no momento em que escrevo, esse cenário ainda tende a piorar. A falta absoluta de liderança política por parte de um governo federal mergulhado na crise, somada à ruptura no tecido social experimentada desde meados de 2013, tornam o Brasil a vítima perfeita para o caos.

As diversas regiões agem de acordo com o espectro político que apoiam, relatórios médicos da Organização Mundial da Saúde são postos em cheque por correntes de whatsapp e o país sequer possui um verdadeiro Ministro da Saúde. O governo federal se nega a informar a população a respeito da real extensão da crise e o faz sob os aplausos de parte considerável da população. A nossa doença social, definitivamente, não é uma gripezinha.

Voltando ao precedente histórico: o que havia de comum a todos aqueles países que, envolvidos na Grande Guerra, tiveram que enfrentar, de brinde, a gripe espanhola? O que os fez marcharem rumo ao progresso uma vez terminado o pesadelo? A unidade. A ideia de que todos haviam lutado juntos contra um inimigo em comum. E não estou falando aqui de nacionalismo, isso é para crianças. Falo de unidade, de empatia, de solidariedade. E tais sentimentos se aplicam, inclusive, aos derrotados.

O ambiente cultural na Alemanha da década de 1920 é provavelmente um dos pontos altos da República de Weimar. Nem a crise econômica causada pela derrota na guerra impediu o cinema alemão de brilhar. Era o progresso. É nessa Alemanha que se dá, por exemplo, a primeira cirurgia de mudança de sexo (assistam ao filme A Garota Dinamarquesa, é brilhante). É claro que uma década depois essa mesma Alemanha estava entregue ao Nazismo, mas ai já não é culpa minha. São os tais ciclos.

Respondendo, então, à pergunta que nos afeta diretamente: o que acontecerá com o Brasil quando tudo isso passar? Mantidas as bases agora postas, corremos o risco de passarmos pela pandemia e nos encontramos, ao final dela, ainda mais fracos, ainda mais atrasados. Caminhamos rumo à elevação das intolerâncias, seguimos visceralmente divididos. O obscurantismo que tomou conta do Brasil é capaz de nos privar da única coisa boa de viver uma grave crise: o progresso. Provavelmente, não teremos carnaval em 2021. E, pior ainda, talvez o de 2022 seja apenas mais um carnaval.

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